sábado, 25 de outubro de 2008

Espelho meu..



Já aconteceu com você de uma pessoa te ligar.. e você não lembrar-se quem é.. mas sabe que a conhece e permite que a conversa role ?
Aconteceu comigo..
Aliás sempre acontece.. (isso quando deixo meu telefone ligado)
Quando comecei a prestar mais atenção nas pessoas isso começou a diminuir..
É que não gosto de conversar com personagens.. ou máscaras..
Quando quero algo assim vou ao teatro..
Mas a diferença é que no teatro você assiste e aprende alguma coisa..
Na vida real você pode ferir-se..
Lembro do diálogo mudo de Érico Veríssimo com seu espelho, na hora onírica em que ele passava pelo rosto o aparelho de barbear..
A idade lhe foge homem.. (?)

PS.: (mas nunca esqueço-me dos humildes e dos puros de coração)

Abaixo minha oração de cabeceira:

Texto:

Solo de Clarineta 1

Livro de memórias.


     O meu amigo mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs
no espelho do quarto de banho, à hora onírica em que passo pelo rosto
o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, numa linguagem
misteriosa feita de imagens, ecos de vozes, alheias ou nossas, antigas
ou recentes, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou
próximos, nos corredores do passado - e às vezes, inexplicavelmente,
do futuro - enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da
noite, parece processar-se fora do tempo e do espaço. Surpreendo-me
quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz ou pensa. Sinto,
no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no
mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas, uns
olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito.
Talvez seja por isso que com certa freqüência entramos em conflito. Mas
a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos
queremos um grande bem. Estamos habituados um ao outro. Envelhecemos
juntos. A face do Outro é o meu calendário implacável.
"Os cabelos te
fogem, homem" - murmuro-lhe às vezes - "Tuas carnes se tornas flácidas.
Vejo a escrita do tempo no pergaminho do teu rosto". - "E como imaginas
que estás?" - replica o meu reflexo. Acabamos consolando-nos mutuamente
com a idéia de que conservamos a mocidade de espírito. Mas até onde isso
é verdade? Encolhemos os ombros e passamos a outras considerações e
devaneios, enquanto o barbeador elétrico zumbe, e o incansável calígrafo
invisível continua no seu sutil trabalho de amanuense da Morte.



Erico Verissimo (1905-1975) - Natural de Cruz Alta, RS. Escritor de estilo simples, excelente contador de histórias, uma das grandes expressões da moderna ficção brasileira. Na sua maneira cinematográfica de apresentar as histórias, Erico Verissimo ampliou o romance, focalizando o homem contemporâneo divorciado da religião, na busca de uma solução nem sempre otimista. Filho de família tradicional, mas arruinada economicamente, exerceu várias atividades profissionais: foi ajudante de comércio, bancário, balconista de farmácia e desenhista na imprensa gaúcha. Viveu nos Estados Unidos, onde foi professor de Literatura Brasileira. Sua temática é tipicamente brasileira e, mais que isso, regional, gaúcha. A tentativa de recriação genealógica e social da história do Rio Grande do Sul atingiu seu ponto culminante na trilogia O Tempo e o Vento: O Continente, O Retrato, e O Arquipélago.

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